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Memórias Invictas: "Gosto muito do Mercado do Bolhão", confessa António Ferreira de Sousa, dono da Casa Hortícola

  • Paulo Alexandre Neves

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Guilherme Costa Oliveira

Aos 95 anos, António Ferreira de Sousa mostra ter boa memória. Não esquece os amigos, o seu Boavista e todas as décadas que viveu no Mercado do Bolhão. Proprietário da Casa Hortícola - loja 1 (antigo Torreão), situado na esquina da Rua Sá da Bandeira e da Rua Formosa, onde ainda se mantém - confessa que gosta do atual mercado de frescos e da cidade. Considera a velhice "muito dura", mas não deixa de pensar que, em breve, poderá voltar a ter o prazer de ler o seu jornal.

Ainda se lembra do primeiro dia em que veio para esta loja?
Lembro-me muito bem. Foi no dia 1 de abril… Tenho de ver os anos. Tinha 20. Se tenho 95 é só fazer as contas [1 de abril de 1949].

E como foi esse primeiro dia, aqui, na Casa Hortícola?
Antes, trabalhava ao domingo e aqui não o fazia. Foi uma regalia. Era uma aspiração naquele tempo.

O que fazia antes?
Estive uns anos a trabalhar na Tabacaria Torres, na esquina da Rua de Antero de Quental com a Rua da Constituição. Aqui era melhor. Ganhava mais.

O que começou a fazer nesta loja?
Comecei por ser marçano. Os primeiros dias a ver como se trabalhava, mas como já o fazia no outro emprego, ao balcão, não foi difícil.

Que tipo de clientes havia?
Neste mercado [do Bolhão], o movimento era muito grande. Havia uma senhora, que vivia no Palácio do Comércio [Rua de Sá da Bandeira] e que vinha falar, muitas vezes, com a minha esposa. Dizia, então, que ‘de sexta para sábado, nesta zona, não se dormia’. Vinham com os carros de bois para descarregar hortaliça. O mercado tinha muito movimento. Nas quatro entradas parecia que havia uma romaria.

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Havia muita procura dos seus produtos?
Nesta zona era a única casa a comercializar este tipo de produtos [sementes, plantas e bolbos]. Ela foi inaugurada, por três sócios, na Rua Alexandre Braga. Um deles, António Moreira da Silva [cujo retrato se encontra no interior da atual loja], chegou a ser gerente da Companhia Hortícola. Depois é que vieram para aqui. Só que um dos sócios veio contrariado. Dizia que a Rua Alexandre Braga era a zona mais comercial da cidade. Acredito que fosse verdade porque, quando desfizeram a sociedade, ele voltou para lá.

Estamos a falar no pós-guerra. Eram tempos difíceis.
Sim, muito, mas também digo que, naquele tempo, o dinheiro tinha muito valor. O trespasse desta casa custou 15 mil escudos [74,81 euros]. Naquela zona [Rua Alexandre Braga], os três sócios passaram por 18 mil escudos [89,78] ao próprio senhorio. O movimento que vinha de Gondomar era grande. De manhã, o transporte que as pessoas fazia, parte dela, era feito a pé. Vinham da Areosa, de Montes Burgos, da Estação de São Bento. Havia o elétrico e pouco mais.

Naquele tempo, o dinheiro tinha muito valor

Tinha tempo para conhecer a cidade?
Conhecia a cidade quando andava na rua. Quando os patrões mandavam entregar mercadoria ou comprar alguma coisa.

Quando é que adquire a Casa Hortícola?
Quando faleceu o sr. Moreira da Silva. Tinha 30 ou mais anos. Casei com a proprietária.

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Manteve praticamente tudo igual, desde esse tempo até agora, na loja?
Sempre. Naquele tempo lavávamos as montras com mangueira. Um dia, os turistas tiraram fotografias a mim e ao marçano que me ajudava. Ele virou-se para mim e disse-me: 'Sr. António, ele estão a tirar fotografias para nos contratar para as limpezas lá na terra'. Às vezes, ele ainda passa por aqui.

O que fazia aos domingos?
No período de verão íamos à praia para o Cabedelo ou Castelo do Queijo. Havia também o futebol, ainda no campo de terra do Boavista. Tenho o distintivo de ouro do clube. Lembro-me que íamos comer uma tijela de rancho ao "Escondidinho", na Avenida da Boavista. Custava 25 tostões. Frequentava também, juntamente com a rapaziada daquele tempo, o Círculo Católico, na Rua Duque de Loulé. Tínhamos um grupo de 12 amigos. Para onde ia um iam os outros. Quando havia aniversários, não havia prendas. O que fazia anos é que pagava aos outros. Mas o grupo acabou porque foram desaparecendo.

Na sua loja, a revista Borda d’Água chegou a ser famosa?
Era muito procurada. Acreditavam na informação meteorológica. Mais antigo era a "Seringador", da Livraria Lello. Era a mais vendida aqui. Depois, para comprar a Borda d’Água fui a Lisboa. Só em Santa Apolónia é que vi um ardina com ela e comprei logo.

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Ainda hoje há muito procura dos produtos que vende?
Hoje, vende-se muito mais bolbos, sementes, plantas. Noutros tempos eram produtos para a horta. Tínhamos clientes certos. O movimento no mercado e em seu redor era muito grande. Vinham de Gondomar e da Póvoa. Havia também os produtos das quintas que haviam dentro da cidade. Por exemplo, em Paranhos. Lembro-me que íamos à Ribeira para consertar os carros de bois. O movimento era grande porque não havia supermercados. As pessoas abasteciam-se neste mercado porque era mais barato.

Quando havia aniversários, não havia prendas. O que fazia anos é que pagava aos outros.

Gosta da cidade?
Gosto. Uma das coisas que gosto é quando os turistas ficam tão entusiasmados com o nosso mercado que parece, para alguns, que ganharam a sorte grande. Gosto de os atender. Fico admirado é quando pedem, por exemplo, sementes de nabiças. Somos a casa mais antiga de sementes.

O que é o Porto para si?
É uma grande cidade. Gosto muito da cidade e gosto muito do Mercado do Bolhão. Agora, está melhor.

Tem 95 anos. Vale a pena viver?
A velhice é muito dura, muito difícil. Até aos 80 anos nem sabia o que era a enfermidade. Depois disso começaram as enxaquecas. Agora, a minha tristeza é não conseguir ler o jornal. Segundo me dizem, depois de fazer a operação às vistas e ter uns óculos atualizados vou conseguir ler o jornal. Vai ser um prazer muito grande. E deixo um conselho: sempre que houver uma ferida deve-se desinfetar. Sempre. Não devemos facilitar.

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