Cultura

O fascínio pelo livro não está em vias de extinção e os alfarrabistas vão à feira para o provar

  • Ana Isabel Moura

  • Notícia

    Notícia

Há um traço comum entre os alfarrabistas: o encanto com que falam do livro enquanto objeto físico. Seja por herança familiar ou acaso da vida, os livreiros que subsistem na cidade consideram que a Feira do Livro do Porto é uma oportunidade para saírem dos casulos onde, durante todo o ano, se dedicam à grande paixão. Admitem que, além de terem oportunidade de transportar este fascínio para um ambiente com público diferenciado, conseguem adquirir um fôlego financeiro que não é exequível no quotidiano.

A história da Livraria Moreira da Costa abrange cinco gerações de uma família que, desde 1902, nunca deixou que o negócio saísse fora do seu círculo. Passados mais de 120 anos, Miguel Saraiva segura a âncora da tradição, mas não está sozinho: a mulher, Susana Fernandes, “aprendeu” a gostar de um universo que antes não era o dela.

Admite que “chegou a achar que o livro tinha tendência para acabar”, porém, agora já não tem essa ideia. “Há muita gente que gosta de livros, cada vez mais jovens vêm cá”, reflete a responsável da livraria mais antiga do Porto.

porto._reportagem_alfarrabistas_2024_20.jpg

“Esta casa nunca iria cair em mãos alheias. Passou do trisavô do Miguel para a bisavó, da bisavó para a avó e da avó passou para minha sogra. Entretanto, aos 18 anos, o Miguel veio para aqui trabalhar e nunca largou isto”, recorda Susana, que, ao mesmo tempo que alicerçou 15 anos de companheirismo com o marido, alimentou uma outra paixão que agora a leva a ser o rosto da livraria na Feira do Livro do Porto.

É o nosso natal

A participação no evento “é muito importante porque permite-nos ter um nível de vendas que durante o ano não conseguimos alcançar. É o nosso natal”, nota, lembrando que a Moreira da Costa é presença assídua no festival literário pelo menos desde os anos 30, de acordo com os registos fotográficos existentes.

Susana e Miguel mostram, com orgulho, as imagens nas quais se pode ver a bisavô do herdeiro da Moreira da Costa a trabalhar na Feira do Livro de 1932. “Já era uma mulher muito à frente do seu tempo”, conta Miguel, que ainda conserva um pequeno banco que Elisa Duarte usava para chegar às estantes mais altas.

porto._reportagem_alfarrabistas_2024_21.jpg

Quase um século depois é também no feminino que a Livrara Moreira da Costa se faz representar nos Jardins do Palácio de Cristal. Depois de um interregno, que só foi quebrado desde que a Feira do Livro voltou a ser organizada pela autarquia, Susana Fernandes esforça-se para, todos os anos, dar a conhecer o espólio aos visitantes do evento e admite: “É muito gratificante levar para lá os livros que fomos juntando”.

Sobre a seleção que vai levar para a feira assume que não vai expor “coisas muito caras”, revelando que está a ser preparada uma surpresa a propósito da homenagem ao poeta Eugénio de Andrade.

Estar lá dá-nos uma visibilidade muito grande

Na Livraria Lumière a paixão é a mesma, mas a história é diferente. Não foi motivada por um legado que Cláudia Ribeiro se fascinou pelos livros. Estava a estudar psicologia quando começou a trabalhar numa livraria e desde aí que nunca mais se desencantou.

Foi em 2001 que, com a irmã, decidiu começar um negócio do zero, iniciando um longo processo de angariação de livros, que, nos dias hoje, enchem as prateleiras do estabelecimento localizado no coração da Invicta. “Foi uma aventura, mas não me imagino a fazer outra coisa”, constata.

porto._reportagem_alfarrabistas_2024_15.jpg

Cláudia garante que o negócio dos livros “não é fácil”, apontando que a transformação digital é um dos desafios mais difíceis de enfrentar. “Antigamente, as pessoas que queriam vender livros vinham aos alfarrabistas. Hoje em dia, vendem na Internet”, lamenta.

Questionada sobre qual é o segredo para conseguir manter a sustentabilidade financeira da casa, a responsável admite que a fidelização de um determinado número de clientes é fulcral, mas não só. Embora nas duas últimas edições não tenha conseguido marcar presença na Feira do Livro do Porto, este ano, está de regresso à Avenida das Tílias – um lugar onde “é sempre feliz e abre novos horizontes”.

“Estar lá dá-nos uma visibilidade muito grande e é uma oportunidade para angariar novos clientes”, refere, apontando que é também um bom momento para firmar laços com os colegas de profissão. “Ajudamo-nos uns aos outros quando é preciso”, salienta.

Nada substitui um livro

No pavilhão da Livraria Lumière, os visitantes poderão encontrar versatilidade sem comprometer as carteiras. “A minha experiência diz-me que não é o sítio certo para levar obras raras. O melhor é levar livros mais acessíveis”, antecipa Cláudia.

Esta é a razão pela qual vai optar por não ostentar na feira uma das relíquias que, atualmente, integra o seu espólio. Uma edição de 1880 d ‘Os Lusíadas, de Luís de Camões, que, apesar de estar exposta numa zona privilegiada na livraria, Cláudia tem “pena de vender”.

porto._reportagem_alfarrabistas_2024_14.jpg

O vínculo que cria com os livros indica que não pode viver sem eles. E é por ainda existirem tantas pessoas assim que a alfarrabista acredita que este “vício” não está em vias de extinção. “Nada substitui um livro”, defende.

Participamos na Feira do Livro desde que passou a ser organizada pela Câmara

Quem por estes dias entra no número 398 da Rua do Bonjardim vê Isabel Soares mergulhada numa verdadeira azáfama. Do alto de um escadote dá às boas vindas aos clientes, enquanto remexe as estantes e recolhe os livros para encaixotar.

A alfarrabista e a irmã, Teresa, arregaçam as mangas para honrar o legado deixado pelo pai, que fundou a Livraria Alfarrabista.eu quando as duas ainda não sonhavam em ficar com o espaço. “Vivemos de clientes antigos. Claro que ao longo dos anos também fomos criando os nossos, mas não vivemos do turismo”, reforça Isabel, que, tal como os outros livreiros da cidade, admite algumas dificuldades em preservar aquele que é o seu ganha-pão.

À semelhança do que acontece com outros alfarrabistas, também as irmãs Soares observam a Feira do Livro como a ocasião ideal para disseminarem esta paixão num contexto que para elas já se tornou num habitat natural. Este ano, admite Isabel, há uma motivação extra: “Fiquei muito contente com a homenagem a Eugénio de Andrade. É mais do que justo, é um grande autor. Dos meus preferidos”.

porto._reportagem_alfarrabistas_2024_31.jpg

A responsável recorda que a Livraria Alfarrabista.eu está presente “na Feira do Livro desde que passou a ser organizada pela Câmara”.

“Sinto que, agora, somos tratadas com muito carinho e cuidado pela organização. São extraordinários connosco”, sublinha Isabel, embora assuma que é sempre uma altura do ano de grande trabalho e esforço pessoal.

“Exige muita entrega, mas vale a pena. Pelo espaço, pela animação e pelo convívio com os colegas. O bolo é muito positivo”, diz a livreira, que, a poucos dias do início do evento, já tem uma estratégia comercial definida.

Por considerar que “aparece sempre o cliente certo para determinado livro”, a alfarrabista opta por levar para a feira a maior variedade possível de literatura que tem à disposição, sabendo, de antemão, que a partir de uma certa altura só se “vende livros mais baratinhos” porque o orçamento dos visitantes começa a emagrecer.

Conseguimos vender livros baratos e em grande quantidade

Levar diversidade de literatura para a Feira do Livro do Porto também é a chave do sucesso da Livraria Académica. A família Canavez não é novata nestas andanças e aproveita o evento para “despachar” livros que, durante todo o ano, se vão amontoando. “O meu pai compra tudo e depois não temos espaço para guardar tanta coisa”, refere o filho do guardião de uma das mais conhecidas livrarias da cidade.

Há mais de 75 anos que Nuno Canavez, agora com 89, conserva obras na Livraria Académica, onde começou a trabalhar como marçano depois de ter respondido a um anúncio de emprego no Jornal de Notícias. As longas décadas atrás do balcão proveram o alfarrabista de um leque de histórias sem fim, que não se cansa de contar. No entanto, os anos pesam e o rosto da livraria prefere deixar o alvoroço da Feira do Livro para o filho, que herdou o mesmo nome do pai, e para o neto, Tiago.

porto._reportagem_alfarrabistas_2024_06.jpg

Nuno Canavez (filho) ajuda o pai na Académica desde os 20 anos e, apesar de admitir que o fluxo de negócio “não se compara” ao de outros tempos, aproveita a oportunidade de estar no festival literário para equilibrar as contas.

Na divisão anexa ao salão de entrada da livraria, Nuno já concentra inúmeras sacas com literatura que pretende divulgar na feira. “Conseguimos vender livros baratos e em grande quantidade. Tudo o que levo não custa mais de 20 euros”, revela, notando que os livros mais procurados por quem passa na banca “são romances”.

porto._reportagem_alfarrabistas_2024_07.jpg

Está conforme estava em 1912

Segundo Nuno, a presença no evento também é uma forma de manter vivo o nome de uma das mais antigas livrarias da cidade, onde, em tempos, passaram ilustres figuras do panorama português. No escritório da Livraria Académica, saltam à vista fotografias de Mário Soares. “Adorava cá vir”, recorda o livreiro.

Num espaço que “está conforme estava em 1912”, quando foi fundado por Joaquim Guedes Silva, a família Canavez guarda inúmeras relíquias, algumas datadas de 1500. Mas essas não saiam das estantes empoeiradas da Académica. Quem as quiser comprar (ou contemplar) tem mesmo de fazer uma visita ao espaço centenário.