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Conversas Sub 30: "É muito bom ver que as salas de cinema estão de regresso à cidade", confessa a jovem realizadora Patrícia Neves Gomes

  • Paulo Alexandre Neves

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O seu avô - Francisco Neves, ex-fotojornalista da Agência Lusa - teve grande influência no gosto pela imagem. A Escola Artística de Soares dos Reis foi "o ponto de viragem". Hoje, dividida entre Lisboa e Porto, Patrícia Neves Gomes reconhece que a Invicta tem um ambiente cultural pujante. "Gostava que o meu próximo filme fosse filmado cá", confessa.

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Longe vão os tempos da aluna da "Soares dos Reis" que, em dois dias, gravou a sua primeira curta-metragem – "Dualidades". Ainda te revês nessa tua primeira obra?
Dificilmente porque a fiz, em contexto académico, quando tinha 17 anos. Mas é engraçado que não me revendo, ou seja, não a teria feito daquela forma, encontro ali muitos ecos daquilo que me continua a interessar e quero falar em cinema. É interessante perceber de onde é que vinha, de onde me encontro e imaginar para onde irei.

A realização mudaria, mas a temática continua a mesma na tua carreira.
É curioso porque acabo por me debruçar muito sobre esta ideia de dualidade, de paradoxo, de duas dimensões de uma qualquer coisa. Também no meu primeiro filme ["O Jardineiro Do Convento/A Jardineira Do Convento"]. Tento procurar isso nas minhas ideias, que estou a desenvolver e a escrever. Há aqui alguma coisa que permanece.

De onde veio essa veia artística?
Sempre tive muita vontade de estar, fazer algo dentro das artes. Pensei que iria ser a fotografia, fruto da educação e das convivências, sobretudo, com o meu avô [Francisco Neves, ex-fotojornalista da Agência Lusa]. Só na Escola Artística de Soares dos Reis é que percebi que me interessavam as imagens em movimento. Acabei por me encontrar no cinema e até hoje é aqui que estou, sem nunca perder a vontade de fotografar. Expresso-me mais inteiramente no cinema.

Acabei por me encontrar no cinema e até hoje é aqui que estou, sem nunca perder a vontade de fotografar

Recuando no tempo e olhando para a Patrícia desses tempos não há nenhum arrependimento?
Pelo contrário, cada ano sinto-me mais concretizada em todas as decisões que tomei e que me trouxeram até aqui.

Falas muito da influência do teu avô.
É uma figura muito importante na minha construção e naquilo que sou enquanto pessoa. Por um lado, desde muito cedo, ensinou-me a pensar em imagens, a tirar fotografias, quase a enquadrar. Ao mesmo tempo, é um grande cinéfilo. Víamos imensos filmes. Por isso é uma figura tão central em tudo isto. Há toda uma presença da imagem, através da fotografia e do cinema. Tudo isto é muito presente, desde que me lembro, na minha vida. Não consigo imaginar-me a fazer qualquer outra coisa que não algo relacionado com a produção de uma imagem.

Outra grande influência na tua vida é a Escola Artística de Soares dos Reis.
Sem dúvida. Foi o ponto de viragem e muito importante para perceber uma série de coisas que queria fazer no futuro.

[O meu avô] É uma figura muito importante na minha construção e naquilo que sou enquanto pessoa

A entrevista decorre no Batalha Centro de Cinema. Que significado tem um lugar como este para uma realizadora?
Ele surge já eu não estou a viver no Porto. Saí para estudar, em Lisboa. Tenho vindo a tentar regressar pouco a pouco e passar mais tempo por cá. É um projeto que ainda estou a descobrir, mas que me parece fundamental para uma cidade que tem vindo a ter cinema. Lembro-me do meu avô e da minha bisavó, que adorava também ir ao cinema, falarem de imensas salas de cinema que existiam e que desapareceram na minha adolescência. É muito bom, agora, ver que as salas de cinema estão de regresso à cidade. O Trindade, o Batalha, este com uma programação muito focada no que se está a fazer, atualmente, no cinema.

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Regressaste, recentemente, do Festival de Cannes, em França.
Trabalhei com a produtora [Pedra no Sapato] e tive a coordenação da distribuição da comitiva do Miguel. Foi uma empreitada bastante grande, com articulação com os outros países coprodutores (Itália, França) e mesmo com os outros produtores associados (China). Foi outra experiência, outro momento formador porque testemunhar, viver, estar tão perto, primeiro, daquele filme que gosto imenso, e, depois, ver o Miguel a receber o prémio foi muito gratificante [n.r: o realizador português Miguel Gomes venceu o prémio de melhor realização do Festival de Cinema de Cannes, pelo filme "Grand Tour"]. É, sobretudo, importante para colocar o nosso cinema no mapa e para que as pessoas prestem outro tipo de atenção. Espero que o cinema português esteja, cada vez mais, presente em Cannes e outros festivais internacionais.

Em algum momento, sentada numa sala de Cannes, pensaste: "Um dia vou cá estar a apresentar o meu filme"?
Adoraria. Tem graça porque, em tom de brincadeira, o Miguel, quando me apresentou ao assessor de imprensa internacional que trabalhou connosco, disse para ele prestar-me atenção porque, daqui a 40 anos, eu irei ter qualquer coisa de importante a dizer no cinema. Agradeci por ele me ter dado esse tempo. Espero, daqui a 40 anos, poder ter essa oportunidade.

Espero, daqui a 40 anos, poder ter essa oportunidade [estar no Festival de Cannes]

O Festival de Riga (capital da Letónia), em outubro de 2023, marca a estreia do teu primeiro filme - "O Jardineiro Do Convento/A Jardineira Do Convento". Outra vez, e sempre, a dualidade.
É a mesma história, filmada duas vezes. Demorou imenso tempo a concretizar porque comecei a pensá-lo em 2018, apresentei as candidaturas para financiamento em 2019, soube os resultados positivos em 2020, em plena pandemia, e só comecei a filmá-lo em 2021. Espero que o próximo não demore tanto tempo.

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Tens algum realizador como ídolo?
Não tenho necessidade de idolatrar alguém, mas inspiro-me muito em Sergei Parajanov [realizador arménio, de "A Cor da Romã" ("Sayat Nova", título original)]. Atualmente posso falar, abertamente, desse filme como uma grande inspiração. Fez-me perceber que posso ser absolutamente livre a filmar. Quanto mais livre for mais próximo vou estar da minha verdade, enquanto artista. É o que eu acredito e me revejo naquele filme. Outro realizador que admiro muito, Andrei Tarkovsky, que adorava Parajanov, dizia que ele chegou a esse lugar, que era só dele, e que, por muito que se tentasse repeti-lo, ninguém iria conseguir fazê-lo com aquela mestria. Penso no filme como uma referência para aquilo que quero fazer enquanto liberdade, não tanto em termos formais ou estéticos, mas como um gesto de liberdade.
Gosto muito do cinema brasileiro. Por exemplo, de “A Falecida”, de Leon Hirszman, o primeiro filme em que participou Fernanda Montenegro. Gosto também muito dos filmes da República Checa, dos anos 60, 70.

E o cinema português? Vocês, jovens realizadores, estão a beneficiar de um grande momento internacional, de maior visibilidade da nossa sétima arte.
Sobretudo em curtas-metragens, pessoas da minha geração têm questionado o que pode ser o cinema e a experimentar. Temos grandes mestres, como, por exemplo, o Manoel de Oliveira, mas fico feliz por perceber que as pessoas estão a descobrir e a experimentar, a fazer o que querem e o que lhes apetece. Pode ter havido momentos de alguma repetição de padrões e determinadas fórmulas, mas, hoje em dia, está a questionar-se muito o que pode ser um filme. Tem de se pensar num filme como um objeto artístico, mas também como fazê-lo.

Tem de se pensar num filme como um objeto artístico, mas também como fazê-lo

O Porto pode ser, algum dia, tema central de um dos teus filmes?
Gostava que o meu próximo filme fosse filmado cá. A cidade não é o tema, mas a relação entre duas pessoas, inspirado na minha bisavó e na minha mãe. Ainda assim, o Porto é um personagem muito presente.

Por onde andaste nas tuas infâncias.
Vou contar uma história bonita. Um dia, os meus avós mostraram-me, em cassete, o "Aniki Bóbó" [a primeira longa-metragem de Manoel de Oliveira] e depois levaram-me a ver os sítios onde foi filmado. Foi transformador. Foram lugares muito importantes para mim. Calcorreei, muitas vezes, os tabuleiros, superior e inferior, da Ponte D. Luís. Tenho uma relação muito próxima com a zona ribeirinha da cidade. Não sei explicar, mas sempre que venho ao Porto vou lá fumar um cigarro, com o meu avô.

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Como defines o atual momento cultural da cidade?
Estão a fazer-se muitas coisas nesta área, por exemplo, em termos de financiamento de novos projetos. Isso já está a acontecer, com as bolsas. Num país com tão poucas oportunidades de financiamento existir um município que o faça é importante. O Porto sempre foi, em termos artísticos, uma cidade com muita vida. As pessoas organizam-se para criar, debater. Isso torna a cidade viva. Muitas vezes tenho saudades dessa energia. Sempre foi e continua a ser uma grande referência em tudo o que é panorama artístico do país.

O que é o Porto para ti?
É a cidade da minha infância, onde me fiz. Sempre que cá venho tenho que ir dar um passeio a pé. Sinto que tenho duas casas. Em Lisboa e aqui, a casa, a minha família. Vai ser sempre memórias, casa, raízes, família, fundação. É a base onde tudo começou.