Sociedade

Era uma vez reis, rainhas e unicórnios e outras “Histórias ao Ouvido” de encantar

  • Porto.

  • Notícia

    Notícia

A cama da Maria Beatriz está cheia de unicórnios. Estão até no pijama e nas pantufas pois, como muitas meninas de três anos, é este animal mitológico que lhe enche a vida de fantasia. Por estes dias, as histórias de encantar são contadas ao ouvido, nas camas do Centro Materno Infantil do Norte (CMIN), à espera do virar do capítulo que é o fim dos tratamentos e o regresso a casa. Para novas histórias felizes.

“A nossa vida é uma história”, reflete a mãe, Cláudia Oliveira. Nascida prematura, a Maria Beatriz já bem conhece os corredores do CMIN. Desta vez, está ali há uma semana por uma infeção pulmonar, mas a história que quer contar é outra: quer ser enfermeira. “Super atenta e inteligente”, a menina, que agora leva ao peito um coração de brilhantes “verde-esperança”, “adora histórias”. A atenção às palavras e as palmas depois do final feliz confirmam isso mesmo.

Maria Beatriz é uma das mais de 700 crianças que, só no último semestre de 2022, ouviram as “Histórias ao Ouvido”, em mais de três centenas de ações protagonizadas pelos voluntários do projeto idealizado pelas Bibliotecas Municipais do Porto.

Relançada em junho, no CMIN, depois de silenciadas as leituras pela pandemia, a iniciativa, que já leva 15 anos de aventuras, ganha vida devido ao trabalho de seis contadores de histórias. E venham mais porque são eles “um fator muito importante, decisivo mesmo”, garante o diretor das bibliotecas municipais, assegurando “a vontade de alargar o serviço a outras instituições”.

“É um espírito de parceria que se deve formar e um apelo para que possamos mobilizar cidadãos que tenham vontade” de colaborar, de “levar mais longe o livro e a leitura”, que tenham “disponibilidade para um compromisso sério” em contexto hospitalar, ou mesmo em contexto de solidariedade social ou prisional, afirma Jorge Sobrado.

Contar histórias e levar outras tantas no coração

Compromisso sério é, pois, o que une Teresa Madureira a estas “Histórias ao Ouvido”. Reformada do ensino especial e com ligação ao teatro, a “Professora Tecas”, como lhe chamam miúdos e graúdos no CMIN, está no projeto desde a sua origem, no antigo no Hospital de Crianças Maria Pia (que, depois, passaria para o Hospital de Santo António).

Nas suas palavras, o que traz Teresa ao projeto é a vontade de “pôr ao serviço o que aprendi melhor na vida: cuidar de crianças, do sorriso delas, de como lhes fazer bem”. Nem sempre é fácil, esta personagem também tem os seus desafios: seja o ânimo da criança, sejam outras distrações.

Com os miúdos mais crescidos sabe que nem sempre resulta contar histórias, mas procura sempre, pelo menos, conversar. E o contacto, em muitos casos, ultrapassa as paredes do hospital. Com mais força com aqueles que estão institucionalizados ou em Portugal apenas para tratamentos.

Mas, no fim, “basta um sorriso para me encher o coração”, confessa a voluntária, que sublinha a importância das ligações que se criam nos casos em que as crianças passam longos períodos internadas. “Há casos complicados, mas temos que ultrapassar isto. Vimos aqui dar um bocadinho de luz, um bocadinho de esperança”, reforça.

“Sinto-me realizada vindo aqui, saio enriquecida. Também preciso disto, também me faz falta”, assume a “Professora Tecas”.

No reino do faz de conta, as histórias fazem o sentido

E porque ninguém escolhe o momento para estar doente, as “Histórias ao Ouvido” acontecem todos os dias, por vezes assinalando datas especiais, que o são lá fora, como dentro do hospital. Num lugar onde as crianças e jovens são reis e rainhas todos os dias, a todas as horas, desta vez, comemorando o Dia de Reis, puderam também decorar as suas próprias coroas.

No reino da Clara, a imaginação dos três anos leva-a a desenhar um sítio longe do hospital, um prado infinito para correr. Para a Camila, nem a timidez a afasta das histórias com castelos brilhantes e mundos encantados, até porque, garante a mãe, “ler faz parte da rotina em casa”, e, por estes dias, também da do hospital.

“O livro e a leitura são, reconhecidamente, uma experiência de libertação, de relacionamento com o outro e com o mundo, mas também um fator de apoio à cura e à terapia”, acredita Jorge Sobrado.

O diretor das bibliotecas municipais reforça que “o livro e a leitura fazem sempre sentido. Fazem sentido em casa como na rua, na escola como no trabalho, mas também em contexto hospitalar, em contexto de solidariedade social”.

Depois de alguns percalços, o “Rei Pequenino”, da história que as voluntárias contam à Maria Beatriz, “já não está sozinho” e “já tem um sono descansado”. Como os meninos a contar os dias para deixar o CMIN e regressar a casa. Como os pais de todos eles, que reconhecem o valor destes momentos de leitura, que escrevem de alegria os capítulos de maior dificuldade.

“Vitória, vitória, acabou-se a história!”.