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Memórias Invictas: "O Porto é a pátria da liberdade", assume Germano Silva

  • Paulo Alexandre Neves

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Nasceu em 1931, num período conturbado entre duas grandes guerras, numa pequena aldeia de Penafiel. Cresceu num ambiente marcado pela II Guerra Mundial. Passou por vários empregos antes do jornalismo, mas foi no mundo da imprensa que descobriu os caminhos mais recônditos e apaixonantes do Porto, cidade a que profundamente se dedica. Como "repórter da cidade" no Jornal de Notícias - "a minha grande escola", afirma - especializou-se na história da Invicta. Ainda hoje deixa-se deslumbrar por episódios que vai descobrindo por mero acaso. Em plenas festas sanjoaninas, Germano Silva, o "Senhor Porto", como muitos o definem, autor de inúmeras obras sobre a cidade, fala dela e dos seus habitantes sempre com grande entusiasmo.

Escolheu a Livraria Académica para esta entrevista. Este é o seu refúgio?
É quase a minha segunda casa. É aqui que encontro muita coisa que me faz jeito para aquilo que escrevo e investigo, mas também porque o seu proprietário [Nuno Canavez] foi, há mais de 60 anos, meu companheiro na Escola Comercial Oliveira Martins. É o amigo mais antigo que tenho no Porto. Passo aqui com muita frequência. Estamos no meio de livros, no meio da cultura.

Nasceu em Penafiel, veio para o Porto com um ano…
Nasci, por acaso, em Penafiel. A minha mãe estava grávida, foi lá ao casamento de uma irmã e eu nasci. Fui batizado logo lá, porque nasci antes do tempo e a minha avó temeu o pior. Logo a seguir vim para o Porto com os meus pais. Depois, aquando da II Grande Guerra, passei uns anos com a minha avó, em S. Martinho de Recezinhos, um sítio muito bonito. Vou lá, de vez em quando, matar saudades.

Como foi a sua infância?
Foi difícil. O meu pai era guarda freio dos elétricos e ganhava muito mal. Veio a II Grande Guerra, os sindicatos. O meu pai foi indicado e eleito para dirigente. Reivindicava e ele, que tinha trabalho efetivo, deixou de o ter. Só trabalhava quando alguém falhava. Portanto foi uma infância difícil, mas não infeliz. Ajudou muito a compreender a vida, a ter dela um conceito muito real. Fiz a instrução primária no Porto. Aos 11 anos fui trabalhar. Primeiro, numa retrosaria, na Rua de Santa Catarina, depois para a Fábrica de Fósforos (Rua do Progresso), e, logo a seguir, para uma fábrica de lanifícios (Rua de Serralves), porque pagavam mais. Trabalhava dia e noite. [Ambas as fábricas, situadas em Lordelo do Ouro, já desaparecidas]. Estive lá até ir à tropa.

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Foi uma infância difícil, mas não infeliz

Como era, então, a cidade?
Intimista, cinzenta, muito apagada. Acordava, de manhã, com os silvos das fábricas a chamar os operários para o trabalho, com os pregões das leiteiras, padeiras, hortaliceiras, que andavam pela rua a vender os seus produtos. Era uma cidade ainda com carros de bois a transitar nas ruas. Vinham dos arredores, da Maia, Matosinhos. Não é, por acaso, que a Avenida Brasil se chamava Rua de Carreiros. Era uma cidade com grande movimento comercial. Tinha as suas distrações. Havia imensos cinemas, teatro, mas, sobretudo, para a burguesia. Os operários tinham as suas próprias instituições – o seu grupo recreativo, a sua sociedade de recreio. A extravagância maior numa ilha – vivi sempre numa, com os meus pais, na Rua do Campo Alegre, ao pé da Praça da Galiza (Ilha do Cruzinho) – era, ao fim das tardes de domingo, os casais saírem e dizerem: 'vamos ao Porto ver as montras'. Nos anos 40, 50, a vida na cidade era muito cinzenta, apagada.

Damos um salto na conversa. O Jornal de Notícias foi a sua grande paixão?
Foi a minha grande escola. Ainda trabalhava na fábrica de lanifícios e matriculei-me num curso noturno na Escola Comercial Oliveira Martins. Concluído o curso andava à procura de emprego e, por acaso, apareceu-me um antigo colega da Ilha do Cruzinho. Disse-me que era chefe dos serviços administrativos do Hospital de Santo António e convidou-me para ir trabalhar para lá. Houve um tempo em que fazia a parte administrativa nos serviços de urgências. Foi aí que conheci os jornalistas. Do Jornal de Notícias era um jovem que por lá aparecia [Sérgio Andrade]. Um dia ganhou um prémio e queria dividi-lo comigo. Em vez do prémio pedi-lhe se me arranjava um cartão para ver o futebol. Passado um tempo, fui falar com o chefe da seção desportiva do jornal [Freitas Cruz] e comecei como colaborador desportivo. Entrei em 1956 e saí em 1996. Saí é uma força de expressão porque ainda continuo por lá. Aposentei-me de um horário, apenas. Quando entrei, os chefes de redação eram uns mestres. Eles é que ensinavam. Devo toda a minha formação, inclusivamente esta propensão para a pesquisa histórica, para a divulgação da história do Porto, ao Jornal de Notícias. Aprendi que para se ser um bom repórter da cidade tinha de a conhecer bem. Um jornal que continua a ser, para mim, muito importante.

Desses tempos destaca diretores, jornalistas?
O Manuel Ramos foi um grande chefe de redação. A projeção do Jornal de Notícias deve-se a ele, inegavelmente. O António Brochado, que era um intelectual, o Freitas Cruz, que ascendeu muito cedo a subdiretor, e o Sérgio de Andrade, um colega com quem trabalhei, diariamente, durante muitos anos. Aprendi também muito com ele.

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Ainda assim, atrevo-me a dizer que a sua maior amizade foi com o Manuel António Pina.
Entrou no jornal em 1970. Já o conhecia do 'Piolho' [célebre café localizado na Praça de Parada Leitão], dos tempos em que trabalhei no Hospital de Santo António. Depois apareceu no jornal e tivemos uma amizade muito grande. Eramos quase inseparáveis.

E no Porto só resta um jornal. Porquê?
O Jornal de Notícias subsiste porque no período quente da revolução, em 1974, no chamado PREC (Processo Revolucionário em Curso), a redação teve o bom senso de não aceitar propostas, que foram feitas em plenários, para destituir o diretor. O Pacheco de Miranda era monárquico, mas liberal, que lutou contra a censura. Quando chama o Freitas Cruz para subdiretor era porque precisava de alguém, com capacidade de diálogo, para lidar com essa gente. O jornal era a menina dos olhos dele. Sabíamos que, no dia em que fosse destituído, ninguém mais se entenderia. Ele saiu quando entendeu. Isso não aconteceu com os outros jornais da cidade (O Comércio do Porto e O Primeiro de Janeiro). Quando há cortes de direções, interesses extra jornal, as coisas não correm bem.

Aprendi que para se ser um bom repórter da cidade tinha de a conhecer bem

Como se define: jornalista, escritor, historiador?
Simplesmente, jornalista. Esta é a minha profissão. Não tenho outra.

Ainda há segredos por descobrir sobre o Porto?
Então, não há? Imensos. Basta ir ao Arquivo Histórico Municipal (na Casa do Infante) ou ao Arquivo Distrital (na Rua das Taipas). Por exemplo, nos arquivos dos mosteiros encontram-se imensas histórias.

Qual foi o último sítio da cidade, o último acontecimento histórico que descobriu e o deixou deslumbrado?
Todos me deslumbram. Ainda recentemente fui, por acaso, a um alfarrabista e encontrei um folheto curioso sobre o São João. Era uma demanda [n.r: em História referem-se às necessidades, desejos e questões que surgem no contexto histórico] que havia entre as criadas, cozinheiras, costureiras da Rua de Cedofeita contra as da Rua do Almada. As primeiras diziam que iam tirar o São João da Rua de Cedofeita para a do Almada. É de 1825. Cedofeita tinha muito poucas casas. Ora, se tivermos ideia de que o Almeida Garrett, em 1847, publicou um livro ("O Arco de Sant’Ana"), onde já fala em "três são joões" (o de Cedofeita, o da Lapa e o do Bonfim) e que eram rivais entre si, mas que, em 1825, já existia essa rivalidade, foi uma descoberta muito curiosa e interessante.

A propósito, o São João foi sempre assim na cidade?
É um santo que se festeja em todo o mundo. No Porto, a notícia mais antiga que temos sobre o São João é numa crónica do Fernão Lopes, do século XIV. Ele vem ao Porto, chega na véspera da festa e relata que encontra a cidade toda na rua, em grande festança. Foi sempre uma festa muito importante para a cidade porque era nesse dia que a Câmara tomava as decisões mais importantes. Funcionava na Antiga Casa da Câmara (reaberta em 2023), junto à Sé, mas a assembleia decorria nos claustros do Mosteiro de São Domingos. Ainda hoje, essa tradição persiste. O atual edifício dos Paços do Concelho foi inaugurado no dia de São João, tal como o Hospital de São João, a Ponte da Arrábida, nas festas da cidade.

[O São João] Foi sempre uma festa muito importante para a cidade

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Ser portuense é, realmente, ser diferente?
É. O portuense, o tripeiro é uma pessoa de caráter, que não se deixa vergar. Está sempre pronto a lutar por aquilo que entende que é o seu direito e a sua justiça. Na Idade Média tivemos exemplos fabulosos de mesteirais, artesãos, mercadores que bateram o pé ao bispo. Até ao século XV, a cidade era do bispo. E com os reis foi a mesma coisa. Quando subiu ao trono, D. João I veio pedir dinheiro aos mercadores da cidade. Eles ajudaram-no e quando quiseram reaver o dinheiro, ele não tinha e deu-lhes uma compensação. Criou o "Termo do Porto" (corresponde, mais ou menos, ao atual distrito do Porto). Ser cidadão do "Termo do Porto" era uma honra muito grande.

Há algum episódio que marca esse caráter das pessoas e da cidade?
É um episódio dos nossos dias: o do Coliseu do Porto (em 1995), quando o queriam vender e a cidade não deixou. O Coliseu é uma referência para a cidade. Maior parte das pessoas já lá foi alguma vez. Foram lá a uma festa de Carnaval, passagem de ano, de Natal, que as companhias ou bancos lá faziam, ou ao circo. Quando disseram que ia ser entregue a uma igreja lutaram por aquilo. Houve aquele episódio do Pedro Abrunhosa, que se algemou. Esse episódio reflete, exatamente, o sentimento do Porto. Foi sempre isso. Duzentos anos antes, os marceneiros da cidade souberam que tinha chegado à Ribeira dois barcos ingleses com mobílias para vender. Estilhaçaram as que estavam no cais e não deixaram que saíssem dali. Este é o caráter do Porto. Defender com 'unhas e dentes' aquilo que é nosso.

O que é o Porto para si?
É a pátria do liberalismo, é o símbolo da liberdade. Foi aqui que se fez a primeira revolução liberal, em 1820, mas o liberalismo portuense já vinha detrás, da Idade Média, com os nossos mercadores. Nasce nas ruelas da Sé com o combate contra a prepotência do bispo, a ditadura episcopal. Para mim, o Porto é, exatamente, isso: a pátria da liberdade.