O que aí vem não é descentralização, explicou Rui Moreira na SIC Notícias
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Em entrevista ontem à noite à SIC Notícias, o presidente da Câmara do Porto falou sobre descentralização e disse sentir-se profundamente defraudado pelo acordo que a ANMP subscreveu com o Governo, sem consultar os municípios. Num país que cria sérios obstáculos à transferência do Infarmed para o Porto, Rui Moreira não tem dúvidas: o que aí vem não é descentralização, é mera transferência de tarefas, que chega com a agravante de não ser correspondida pelos necessários recursos.
Começando por explicar o porquê da sua contestação ao acordo estabelecido pela Associação Nacional dos Municípios Portugueses (ANMP) e o Governo, Rui Moreira recordou que, em março, decorreu uma cimeira entre as Áreas Metropolitanas de Porto e Lisboa, o primeiro-ministro e vários ministros do Governo, e que contou com a presença do Presidente da República.
Essa cimeira, decorrida em Sintra, foi o culminar de "um processo lento, mas muito trabalhado", entre os 35 municípios que compõem as duas Áreas Metropolitanas do país. E, a partir dela, resultaram um conjunto de conclusões com o Governo sobre "aquilo que deveria ser o mapa da descentralização", afirmou.
Naturalmente, para o presidente da Câmara do Porto, o caminho a seguir seria este, já estava iniciado. Aliás, notou, "todos [os presidentes de câmara das Áreas Metropolitanas] ficaram convencidos de que era por ali". A agenda estava definida com grande empenho de todos, inclusive, reforçou, com o envolvimento do primeiro-ministro e do Presidente da República, "porque também foram autarcas". Tal facto, admitiu, criou "legítimas expectativas".
No entanto, "pelo meio, surgiu um acordo entre PS e PSD sobre descentralização, que ninguém percebeu muito bem". Subitamente, através da comunicação social, a ANMP anunciou que fez um acordo com o Governo, recordou. Ao mesmo tempo, os municípios receberam "mapas de Excel" que indicavam que competências iriam ser transferidas e, por troco, foram apresentados montantes "claramente insuficientes".
Ainda mais grave, assinalou o autarca, foi o facto daquilo que era proposto não corresponder ao que tinha sido negociado no âmbito das Áreas Metropolitanas, "e que as populações há tanto ansiavam": a transferência de poder político para os órgãos de soberania locais. Em seu lugar, "vieram tarefas".
Nessa medida, para Rui Moreira, a condução do processo pela ANMP foi desastrosa, tanto mais que outras personalidades "insuspeitas", como o presidente da Câmara de Gaia, Eduardo Vítor Rodrigues (eleito pelo PS), fez duras críticas à forma como tudo foi orquestrado à revelia dos municípios. O que levou o também presidente da Área Metropolitana do Porto, "com mandato por unanimidade", a transmitir a sua posição ao Governo.
Face ao que está definido no acordo, Rui Moreira não tem dúvidas: "o que aí vem é mau para o país". Escalpelizando este entendimento, ao qual o Município do Porto deliberou não se vincular, o autarca observou que o que chegará "são funções de hotelaria". Em relação à gestão dos centros de saúde, fica de fora, por exemplo, a definição dos horários de funcionamento. Nas escolas, o que se propõe é a "manutenção de edifícios", que continuam ser património do Estado central, além de as câmaras ficarem com o encargo de pagar os consumíveis. E, da análise das "folhas de Excel", os recursos financeiros para o cumprimento destas tarefas são "manifestamente insuficientes", declarou.
"Este processo é uma forma de destruir o Estado social"
Conforme já foi público, os municípios terão a liberdade de cumprir a lei que vier a ser feita sobre esta matéria no período máximo de três anos e, se assim for, a Câmara do Porto seguirá este princípio, admitiu Rui Moreira. Mas, mais do que isso, tratando-se de um facto consumado, alerta o autarca que "esta é uma forma de destruir o Estado social por interposta pessoa".
No futuro, quando as câmaras verificarem que não têm os recursos suficientes para o cumprimento das tarefas, será tarde de mais. "A culpa será dos municípios", vaticina. Razão pela qual enfatizou a ideia de que o que está em causa não é descentralização, já que a mesma pressupõe a transferência de poder político.
Assim sendo, uma vez que é dada uma moratória de três anos para a implementação destas tarefas, "com base naquilo que nos é apresentado, com as responsabilidades que nos querem passar e com recursos que nos querem atribuir", o Município do Porto, com toda a certeza, retardará, ao máximo, essa vinculação, asseverou.
Tribunal de Contas é força de bloqueio à autonomia dos municípios
Intimamente relacionada com a instituição de poderes e a autonomia dos municípios está a atuação do Tribunal de Contas (TdC), tema aliás que marcou a audiência com o Presidente da República, na terça-feira, recordou o autarca na entrevista. Na sua opinião, "a forma como hoje atua o Tribunal de Contas (TdC) à face da lei - e eu sou institucionalista - impede de facto que os municípios cumpram os programas sufragados pelos eleitores, porque há uma teia montada através da legislação e do Estado".
Estas preocupações, fez notar, debatidas no seio das duas Áreas Metropolitanas, estavam assinaladas "nos acordos e nos documentos da Cimeira de Sintra". A sua resolução, sublinhou, não traria qualquer despesa para o Estado, já que se tratava - apenas - de transferir poderes efetivos, que é o que não acontece com este acordo. "Receber um cheque de 20 euros para pagar 30 euros, à conta das deslocações de um médico que faça visitas domiciliárias, não é descentralização nenhuma. É fazer dos presidentes de Câmara tarefeiros. Ao menos que seja remunerado pelo justo preço".
Ainda antes do acordo entre a ANMP e o Governo ter sido anunciado, lembrou o presidente da Câmara do Porto, já estas preocupações foram, aliás, objeto de deliberação de Câmara: "o Executivo municipal tinha anteriormente aprovado - por unanimidade - uma moção da CDU em que ficou devidamente expressa a recusa a uma mera transferência de tarefas sem a devida remuneração", e em que se assinalava também que a verdadeira descentralização é aquela que transfere poder efetivo, explicou.
Infarmed: "Se querem pôr uma placa, mais vale não porem"
O Infarmed também explica por que o processo de descentralização depois não tem consequência, entende Rui Moreira. Na entrevista, recordou que lhe foi comunicado pelo primeiro-ministro e pelo ministro da Saúde que o Governo decidira transferir o Infarmed para o Porto, após o bom desempenho da cidade na candidatura à Agência Europeia do Medicamento. O que lhe pediram foi, unicamente, apoio. Obviamente, constatou, "não ia dizer que não".
Indagado sobre os alertas da Comissão de Trabalhadores, Rui Moreira referiu que não iria pronunciar-se quanto "às justas preocupações dos trabalhadores e familiares". Como salientou, "não há nenhum processo de descentralização, de transferência de poderes, que não cause isto [mudança]". Aliás, tal como "o processo de centralização de que Portugal foi alvo nos últimos 40 anos, causou aflições a muitos portuenses".
Mas, pelo diagnóstico que o autarca faz, "se o Governo decidiu e depois não consegue concretizar porque surgem constrangimentos, então não vou acreditar que alguma coisa seja alguma vez descentralizada".
A descentralização é, acima de tudo, "uma decisão política", entende o presidente da Câmara do Porto e, naturalmente, traz com ela mudanças. E à mudança sucede-se, neste caso, uma resistência desmedida que colocou o Governo no "limbo".
Como observou, já passaram vários meses desde que foi anunciada a decisão. Neste período, foi o próprio presidente insultado pela sua atitude de dizer "sim" à transferência. Mais recentemente, foi a própria cidade o alvo de "insultos", em que se disse que a mudança iria provocar problemas de saúde pública no país e no mundo. "Não se compreende como é que alguém, que deve obedecer às ordens do ministro, depois da decisão tomada, tenha o topete de insultar a cidade, como se o Porto fosse noutro planeta", analisou o presidente da Câmara.
Por esse motivo, Rui Moreira diz que não sabe se a 1 de janeiro de 2019 o Infarmed estará no Porto. Mas uma coisa é certa, afirmou: "Se querem pôr uma placa na porta, mais vale não porem". Até, porque, constatou "o processo do Infarmed faz-nos aumentar as suspeitas relativamente ao processo de descentralização. Se não são capazes de descentralizar o Infarmed, sê-lo-ão para descentralizar a educação, a saúde ou coesão social?"
O caso do Infarmed, concluiu, "é um péssimo sintoma do estado de um país em que o poder político quer tomar decisões, mas depois há um Estado que não foi transformado e que resiste à mudança".